Claramente o dia tinha se tornado
perene para mim. Saí da escola com um fulgor nos olhos de menina que acabara de
fazer travessura, e assim como qualquer outra, guardava um segredo. Papai foi
me buscar e logo fui me aquiescendo de meu erro, mas não podia deixar claro:
devia continuar em sigilo.
Corri ao pátio de casa e logo me
encaixei na grama macia debaixo da goiabeira. Lá me sentia segura. Peguei o
livro que, de certa forma tinha o roubado na escola, e pus-me a ler, pela
décima vez. Eu o adorava, razão pela qual cometi o erro. Me peguei pensando se
o que tinha feito era pecado. Foi então que olhei para o céu e me tornei a
perguntar aos ventos o que tinha acima das nuvens. Seria papai do céu a me
castigar? Será que ele me perdoaria? Eu tão nova, que mal podia alcançar a
maçaneta da porta com minhas mãos suadas e frias, e cheia de medo do que podia
acontecer, corri.
Algum tempo depois, quando talvez
acumulado alguns pecados transgressores, tive de me confessar ao padre. Era a
tradição da religião. Subi os degraus e fiquei na fila junto a outras crianças,
a espera que porta abrisse e o padre chamasse o próximo. Tinha uma agitação tal
que ponderei se tinham mesmo todas aquelas crianças pecados infames, que
tivessem que exteriorizá-los para conseguirem ser aceitas pelo papai do céu. Mas
mamãe e papai sempre recitavam um verso da Bíblia que dizia que as crianças
seriam aceitas no céu. Por que então tinha de me confessar? Que pecados eu
tinha? Eu era a segunda da fila. Fiquei nervosa, porque não tinha pensado no
que poderia pedir desculpa a papai do céu. Cheguei ao confessionário e falei ao
padre, contando em meus dedos todos os pecados. Disse que bati no coleguinha
(mas nem era sério, já tínhamos feito as pazes), e que falei palavrão (mas meu
pai também falava, e eu sabia que ele era um santo. E afinal, nem era tão forte
assim); mas escondi meu segredo. Saí de lá com olhos baixos, e com a voz do
padre ressoando em meus ouvidos “você tem que rezar três ave-marias, dois
pais-nossos e uma oração do anjo da guarda”.
Naquela noite, então, ajoelhei-me ao
pé da cama e pus-me a rezar. Não rezava pelos meus palavrões, mas sim pelo meu
profano roubo. Senti a aspereza das palavras que saiam de minha boca e
imaginava elas indo todas dançando ao céu. Me deiteiafim de que pudesse
finalmente recomeçar. Transcender um universo cheio de estrelas e constelações
infinitas, e assim, ser uma nova pessoa.
Acordei e ainda
era escuro, presumo que eram umas quatro da manhã. Tentei levantar, mas meu
corpo estava imóvel como pedra. Talvez também estivesse fria como ela, e morta.
Minha cabeça estava cada mais afundando no travesseiro que achei que ia sumir.
Fiz força com a mão para tentar acordar meu corpo, mas não adiantava, eu estava
morrendo. Compreendi exatamente o que se passava. Era o preço do pecado. Papai
do céu não me perdoara, e por isso eu estava morrendo. Ou era a culpa me
desvanecendo, me levando para um desconhecido lugar que não podia saber qual. Repeti
tantas vezes as orações, mas elas não surtiam efeito. Nem chorar eu conseguia.
Tentei gritar, mas a voz arranhava minha garganta e nem um grunhido atingia o
espaço. Eu era a culpada. Papai do céu não me perdoara. Culpa, culpa.
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