terça-feira, 24 de novembro de 2015

Culpa

Claramente o dia tinha se tornado perene para mim. Saí da escola com um fulgor nos olhos de menina que acabara de fazer travessura, e assim como qualquer outra, guardava um segredo. Papai foi me buscar e logo fui me aquiescendo de meu erro, mas não podia deixar claro: devia continuar em sigilo.
Corri ao pátio de casa e logo me encaixei na grama macia debaixo da goiabeira. Lá me sentia segura. Peguei o livro que, de certa forma tinha o roubado na escola, e pus-me a ler, pela décima vez. Eu o adorava, razão pela qual cometi o erro. Me peguei pensando se o que tinha feito era pecado. Foi então que olhei para o céu e me tornei a perguntar aos ventos o que tinha acima das nuvens. Seria papai do céu a me castigar? Será que ele me perdoaria? Eu tão nova, que mal podia alcançar a maçaneta da porta com minhas mãos suadas e frias, e cheia de medo do que podia acontecer, corri.
Algum tempo depois, quando talvez acumulado alguns pecados transgressores, tive de me confessar ao padre. Era a tradição da religião. Subi os degraus e fiquei na fila junto a outras crianças, a espera que porta abrisse e o padre chamasse o próximo. Tinha uma agitação tal que ponderei se tinham mesmo todas aquelas crianças pecados infames, que tivessem que exteriorizá-los para conseguirem ser aceitas pelo papai do céu. Mas mamãe e papai sempre recitavam um verso da Bíblia que dizia que as crianças seriam aceitas no céu. Por que então tinha de me confessar? Que pecados eu tinha? Eu era a segunda da fila. Fiquei nervosa, porque não tinha pensado no que poderia pedir desculpa a papai do céu. Cheguei ao confessionário e falei ao padre, contando em meus dedos todos os pecados. Disse que bati no coleguinha (mas nem era sério, já tínhamos feito as pazes), e que falei palavrão (mas meu pai também falava, e eu sabia que ele era um santo. E afinal, nem era tão forte assim); mas escondi meu segredo. Saí de lá com olhos baixos, e com a voz do padre ressoando em meus ouvidos “você tem que rezar três ave-marias, dois pais-nossos e uma oração do anjo da guarda”.
Naquela noite, então, ajoelhei-me ao pé da cama e pus-me a rezar. Não rezava pelos meus palavrões, mas sim pelo meu profano roubo. Senti a aspereza das palavras que saiam de minha boca e imaginava elas indo todas dançando ao céu. Me deiteiafim de que pudesse finalmente recomeçar. Transcender um universo cheio de estrelas e constelações infinitas, e assim, ser uma nova pessoa.

Acordei e ainda era escuro, presumo que eram umas quatro da manhã. Tentei levantar, mas meu corpo estava imóvel como pedra. Talvez também estivesse fria como ela, e morta. Minha cabeça estava cada mais afundando no travesseiro que achei que ia sumir. Fiz força com a mão para tentar acordar meu corpo, mas não adiantava, eu estava morrendo. Compreendi exatamente o que se passava. Era o preço do pecado. Papai do céu não me perdoara, e por isso eu estava morrendo. Ou era a culpa me desvanecendo, me levando para um desconhecido lugar que não podia saber qual. Repeti tantas vezes as orações, mas elas não surtiam efeito. Nem chorar eu conseguia. Tentei gritar, mas a voz arranhava minha garganta e nem um grunhido atingia o espaço. Eu era a culpada. Papai do céu não me perdoara. Culpa, culpa.          

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